por Antônio Luiz M. C. Costa, na Carta Capital
O planeta no qual Dilma e o chanceler Antonio Patriota conduzirão o
País não é o mesmo com o qual Lula e Celso Amorim conviveram durante a
maior parte do seu mandato. É um lugar mais perigoso sob muitos
aspectos, mas no qual o Brasil não só poderá, como será praticamente
obrigado a desempenhar um papel cada vez mais importante.
Estados Unidos e União Europeia encolheram em termos relativos. Devem
continuar a lutar com problemas financeiros pelos próximos quatro anos –
talvez muito mais. O Japão não conseguiu se recuperar inteiramente
desde o estouro de sua bolha no início dos anos 90, mesmo tendo a
relativa vantagem de contar com um povo historicamente menos propenso à
rebeldia.
O historiador estadunidense Andrew McCoy publicou um artigo no qual
propõe quatro roteiros plausíveis, não necessariamente excludentes,
pelos quais os EUA poderiam perder a hegemonia global de maneira súbita,
antes de 2025: 1. Declínio econômico em razão da perda do status
especial do dólar como moeda global de reserva, seguido da necessidade
de corte de gastos militares. 2. Novo choque do petróleo, com árabes e
iranianos exigindo pagamento em moedas que não o dólar e fazendo acordos
militares com a China. 3. Catástrofe militar no Afeganistão e Golfo
Pérsico, com retirada humilhante ante o Taleban ou fracasso em garantir o
embarque de petróleo após embargo árabe. 4. Terceira guerra mundial,
com a estrutura militar e informática dos EUA paralisada por ciberataque
chinês.
Mesmo na ausência de eventos tão -espetaculares, McCoy acredita que a
decadência relativa dos EUA será mais rápida que a “aterragem suave”
até 2040 ou 2050 que muitos tendem a presumir. Entre 2020 e 2040, pode
surgir um “oligopólio global” no qual potências ascendentes como China,
Rússia, Índia e Brasil colaborariam com as decadentes, Reino Unido,
Alemanha, Japão e EUA, numa dominação mundial ad hoc como a das
potências imperialistas europeias do fim do século XIX. Outra
possibilidade seria o aparecimento de hegemonias regionais, cada
potência controlando sua região imediata.
A China ganha peso econômico e político de maneira cada vez mais
espetacular, com um crescimento acelerado que deve fazer seu PIB
ultrapassar o dos EUA, entre 2017 e 2027, dependendo da valorização ou
não de sua moeda em relação ao dólar. Pelo critério de paridade de poder
aquisitivo, pode alcançar os EUA já em 2012 e nos anos 2020 sua
produção será comparável às dos EUA e da Europa Ocidental somadas, o que
significa um consumo similar de energia e matérias-primas. Está também
desenvolvendo conhecimento e poderio militar suficientes para fazer
valer suas prioridades. Hoje produz por conta própria e exporta caças de
última geração que até recentemente importava da Rússia e sua ciência
rivaliza com a dos ocidentais em vários campos, inclusive astronáutica,
física nuclear, software e engenharia de sistemas: o computador mais
poderoso do mundo, hoje, é chinês.
A Rússia, apesar de ter uma economia
volátil por causa de sua dependência excessiva da exportação de energia e
matérias-primas e continuar a ser basicamente uma potência em crise,
com dificuldades para manter adequadamente suas forças militares, também
voltou a ser geopoliticamente respeitável. Está reconstituindo sua
influência sobre a maior parte da antiga União Soviética e acaba de
formar uma nova “União Eurasiana” com Belarus e o Cazaquistão. A
prioridade estratégica da Otan hoje é evitar a convergência entre Moscou
e Pequim e a consolidação da Organização para Cooperação de Xangai em
uma verdadeira aliança militar, que poderia se tornar muito mais
ameaçadora que o finado Pacto de Varsóvia.
A Índia cresce de maneira mais lenta, menos ruidosa e com menos
pretensões aparentes a um papel geopolítico global, mas também detém
armas nucleares, tem uma base considerável em pesquisa científica. A
disputa de territórios e recursos hídricos a opõe à China, mas se
mantiver o ritmo de desenvolvimento econômico, seu PIB ultrapassará o
dos EUA por volta de 2050.
Ao mesmo tempo, o petróleo esgota-se, energia e matérias-primas se
tornam mais escassas e o ambiente planetário é cada vez mais
comprometido para além de sua capacidade de regeneração natural. As
perspectivas globalistas de universalização do consumo estadunidense dos
anos 90 se revelam insustentáveis: não há como o mundo inteiro
continuar a crescer emulando o modelo ocidental, saqueando recursos
finitos como se não houvesse amanhã.
A sobrevivência da civilização a longo prazo está em jogo e
nesse jogo de soma zero – ao menos enquanto não surjam novas
tecnologias ainda inimagináveis –, velhas e novas potências têm
interesses opostos. As primeiras querem manter sua fatia tradicional dos
recursos do mundo e do direito a poluir, enquanto as segundas
pretendem, de maneira igualmente natural, igualar os padrões de consumo
de suas populações aos dos paí-ses mais desenvolvidos. É inevitável que
se choquem e o mais que se pode esperar é que isso aconteça da maneira
mais negociada e menos violenta possível.
O cenário econômico-financeiro também não comporta mais a
desregulamentação neoliberal dos anos 90. Todos os países,
principalmente os do Norte, estão pagando caro demais pela farra
financeira que endividou governos além de sua capacidade de pagamento
para permitir que executivos de um punhado de grandes bancos
continuassem em seus cargos, a receber bônus bilionários. A pressão por
um mundo mais gerenciado e pelo encurtamento das rédeas- dos centros de
poder do Norte também será cada vez mais irresistível.
Que papel o Brasil desempenhará nesse cenário de transição de um
mundo unipolar de falsa abundância para um multipolar de escassez
administrada? Se quiser ser, ele próprio, um desses polos, não deve se
descuidar do crescimento econômico, da sustentabilidade ecológica e da
estabilidade financeira, mas é pelo menos igualmente importante
firmar-se como centro independente de inovação científica e tecnológica e
ter recursos para defender sua soberania, inclusive sobre seus recursos
marítimos.
Mais importante ainda é reforçar seus laços de solidariedade e
confiança mútua com os países da América Latina, do Caribe e da África,
para os quais o Brasil é uma referência e uma alternativa natural à qual
devem recorrer para se contrapor tanto às pressões dos países ricos
tradicionais – pelas quais todos eles tiveram de abrir mão da soberania e
de recursos naturais no passado recente – quanto às pretensões da China
e de outras potências asiáticas ascendentes a assumirem o controle de
seus recursos, com investimentos que hoje são bem-vindos, mas que amanhã
poderão se mostrar tão sufocantes quanto foram os dos poderes
imperialistas do passado.
Sejam quais forem as pretensões do Brasil, porém, precisa fazer o
possível para evitar que as tensões resultantes dessa recomposição do
poder global sem precedentes resultem em guerras inúteis e violência
desnecessária. Por suas dimensões, pelo grau de desenvolvimento de sua
economia e por sua história e cultura, o Brasil está em posição de atuar
como fiel da balança entre Ocidente e Oriente, entre Norte e Sul.
Desperdiçar essa oportunidade seria uma falta com seu povo e a
humanidade.
Por mais que tenha sido criticado e mesmo ridicularizado pela
imprensa conservadora, o rumo da política externa nos últimos oito anos
foi, em geral, acertado, como reconheceram os especialistas
internacionais. Celso Amorim foi considerado o “melhor chanceler do
mundo” pelo editor da Foreign Policy, David Rothkopf,- e este ano ficou
em sexto lugar na lista dos cem pensadores globais mais importantes da
mesma publicação, seguido por Ahmet Davutoglu, chanceler turco que tem
conduzido política semelhante e foi seu parceiro na negociação com o Irã
e ambos muito à frente de nomes como Angela Merkel e o casal Clinton. A
mesma linha fez de Lula um dos líderes mais -populares do mundo – e o
primeiro lugar na lista da revista Time das cem pessoas mais influentes
do mundo, também de 2010.
Em time que está ganhando não se mexe, dizem. Naturalmente, novos
nomes são indispensáveis, por necessidade da democracia e da renovação
de quadros e lideranças, mas não se deve mudar o rumo, terá de ter
cuidados e muita clareza do que se pretende. Até porque pelo menos os
dois próximos anos, os primeiros do novo governo, devem ser
particularmente críticos para o cenário internacional.
Dada a situação financeira europeia, há um sério risco de um segundo
tempo da crise internacional ser pior que o primeiro. O capital político
de todas as principais lideranças ocidentais, bem como sua munição
financeira, foram praticamente esgotados pelas medidas tomadas desde
2008. O quadro político dos EUA, até a próxima eleição presidencial é de
completo impasse, com risco de ser quebrado em favor do Tea Party e de
uma figura como Sarah Palin. Muitos países europeus importantes caminham
para situações semelhantes, inclusive a Itália, a Bélgica, a França e,
talvez, a Alemanha.
É preciso redobrar o cuidado com posturas ingênuas, ainda mais agora
que os vazamentos do WikiLeaks não mais nos deixam ignorar os reais
interesses dos EUA por trás dos discursos moralistas. A única crítica
aparente de Dilma à política externa dos anos Lula-Amorim, citada em
entrevista ao Washington Post, referiu-se à abstenção do Brasil em uma
resolução para expressar “grande preocupação” com o uso de
apedrejamento, flagelação e amputação como punição no Irã. Disse que
“não faria concessões” nessa questão.
Claro que é desejável abolir essas práticas, mas seria esse o
verdadeiro propósito da moção? Se fosse, por que não foi estendida a
países alinhados ao Ocidente que fazem o mesmo, como a Arábia Saudita,
os Emirados Árabes Unidos e o Paquistão? Por que não condenar o recurso à
pena de morte em geral, inclusive aplicada no Ocidente? O método de
execução – injeção letal – foi um tanto mais limpo e moderno, mas pouco
antes da votação dessa resolução, os EUA executaram uma mulher com
aparente deficiência mental, Teresa Lewis, por acusa-ção de cumplicidade
no assassinato do marido análoga à que pesa sobre Sakineh Ashtiani,
apesar dos protestos da Anistia Internacional e de outros defensores de
direitos humanos.
Deve-se observar que na mesma entrevista, Dilma mostrou estar
consciente de que os desastres do Iraque e do Afeganistão são a prova
viva da falência da política de guerra e que o melhor caminho é
construir a paz no Oriente Médio. A alternativa pode provocar muito mais
sofrimento que qualquer crime do qual Saddam Hussein ou Mahmoud
Ahmadinejad possam ser acusados.
Mensagens vazadas pelo WikiLeaks vindas da Itália, Austrália e Arábia
Saudita deram eco às advertências nas quais Fidel Castro insiste há
meses, de que são muito sérios tanto as pressões de Israel e das
monarquias árabes por uma guerra contra o Irã quanto o risco de que esta
degenere numa guerra nuclear. Somam-se a favor disso os interesses dos
EUA em controlar fontes de gás e petróleo cada vez mais escassas, os da
Europa em reduzir sua dependência energética da Rússia, os de Israel em
eliminar um rival que dificilmente os atacará, mas encoraja a
resistência de libaneses e palestinos e assusta israelenses a ponto de
levar seu governo a temer a emigração de judeus.
Caso não se queira fazer concessões em uma política internacional de
defesa ao respeito aos direitos humanos, isso também deve significar ser
imparcial e criticar com a mesma veemência as práticas violentas e
autoritárias de grandes potências como a China e os próprios Estados
Unidos, bem como de seus aliados. Ou não passará de hipocrisia a serviço
deste ou daquele interesse do momento, desmoralizando o próprio
conceito de direitos humanos. Este início de século mostrou os perigos
do idealismo de conveniência, para os quais as mesmas práticas que são
aceitas em nome da soberania e do respeito às diferenças culturais,
quando partem de governos aliados ou que não convém desafiar, passam a
justificar condenações, embargos e invasões quando se trata do alvo da
vez da estratégia das potências dominantes.
FONTE:
http://www.rodrigovianna.com.br/vasto-mundo/por-mares-revoltos-a-paz-sem-ingenuidade.html#more-5856
Nenhum comentário:
Postar um comentário